A mesa de jantar de madeira ocupava um espaço grande no salão-restaurante do quarto andar. Um grupo de garçons, todos finamente engravatados, esperava os convidados naquela noite de São João de 1952, a primeira noite  do Grande Hotel Caldas de Cipó, hoje fechado. Juca Reis – atualmente com 85 anos –, um dos garçons da casa, foi encarregado de servir ao hóspede do quarto 81, a suíte presidencial. Naquele dia, lembra Juca, a cidade sertaneja de Cipó, a  240 km de Salvador, estava abarrotada de gente, que da praça Juracy Magalhães observava o edifício branco. “O chão tremia, estava fervilhando”.

No hotel – tombado pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural (Ipac) em 2008 –, tido pelos especialistas como uma das hospedarias mais luxuosas da época, só se hospedavam figuras importantes e pessoas endinheiradas. A maioria dos cipoenses, que, como Juca, assistiram à construção do edifício por dez anos, só entrava como funcionário. O luxo do espaço surpreendia os empregados, mas não tanto quanto a figura do hóspede do quarto 81. Quando Getúlio Vargas entrou no restaurante, o silêncio tomou conta e Juca se posicionou para lhe servir. Com gosto, relembra: “Um momento para não esquecer”.

Cada detalhe daquele dia se transformou num grande acontecimento. A chegada do presidente de avião, acompanhado do então governador da Bahia, Régis Pacheco, foi um dos mais memoráveis. “Tinha polícia em tudo o que era canto, a cidade inteira foi até a pista de pouso ver o avião chegar”, comenta Juca. À espera de Getúlio estavam o jornalista Assis Chateaubriand e o escritor mineiro Guimarães Rosa, acompanhados por centenas de homens montados em bois. Lá, aos olhos dos cipoenses, o presidente foi condecorado com a Ordem do Vaqueiro, vestindo um gibão e chapéu de boiadeiro.

Na noite da inauguração, cerca de dez mil pessoas, entre turistas e jornalistas, foram à cidade. Para abrigar tanta gente, colchões foram trazidos dos municípios vizinhos. Na época, o Grande Hotel, com 8,5 mil metros quadrados de área construída e cinco andares, tinha 80 quartos – além da suíte presidencial –, um cassino, bares, duas piscinas de águas termais, um salão de festas, terraço e restaurante. A obra pública, realizada pela construtora Christiani Nielsen, deveria ter sido entregue ainda na década de 1940, mas os materiais de construção não chegavam à cidade. “Como o mundo estava na Segunda Guerra Mundial, faltavam materiais básicos, como cimento”, explica Edson Fernandes, professor da Faculdade de Arquitetura da Ufba e autor do livro Estância Hidromineral de Cipó: Um Balneário no Sertão da Bahia, lançado pela Edufba em 2013.
 

Terra da Mãe-d’Água
Antes de entrar na cidade, ainda na BR-110, a imagem do Grande Hotel salta aos olhos dos viajantes desavisados. Mas não é o tamanho, muito menos a riqueza e a imponência da construção que fascinam quem quer que veja o prédio. O objeto de fascínio é o local onde ele está inserido – no meio do sertão, rodeado por árvores, casas e pequenos edifícios.
Nascido em Salvador e criado em Cipó, Fernandes só percebeu o quanto aquela presença era inusitada quando, ainda na infância, visitou outras cidades do interior. “O hotel é um edifício completamente fora da escala urbana daquela cidadezinha. Outra estranheza é em relação à organização dos espaços. Cipó, por ter sido planejada, tem ruas e passeios largos, arborização, edifício de linhas retas. Naquele tempo, a gente não via isso em outras cidades”, diz.

Como atestavam os antigos romanos, “águas fundam cidades”. Mesmo com muito sol e pouca chuva, Cipó é conhecida como um sertão úmido. Banhada pelo rio Itapicuru, o município abriga fontes de águas termais, vistas como milagrosas. As propriedades medicinais das águas, que carregam em si metais como o ferro, começaram a atrair pessoas para a região no século XIX, que lá buscavam a cura das mais variadas doenças. Logo, foram construídos balneários, pequenas casas de banho individuais equipadas com uma banheira de água quente. “Para receber tanta gente, o médico Genésio Sales construiu o Hotel Termal, onde abrigava os pacientes”, lembra Fernandes. As águas mágicas eram tão importantes para a região que, no passado, Cipó era conhecida como Sertão Arraial da Mãe d’Água de Cipó.

O improvável sucesso da pequena cidade fez nascer, em 1938, um novo hotel, esse um pouco mais suntuoso do que o primeiro, o Rádium. Em anexo, foi construído um clube, comumente confundido com um cassino. “Mas esse espaço não funcionava como um cassino mesmo, era mais um clube para jogos, festas. Era para onde os doentes iam se divertir à noite”, esclarece o pesquisador.
Para muitos cipoenses, os tempos áureos da cidade começaram na inauguração do Grande Hotel, período em que fazendeiros, políticos e comerciantes ricos se tornaram rostos repetidos naquela paragem. Mas, de acordo com os estudos de Edson Fernandes, a construção do hotel, na época apelidado de Elefante Branco da Terra, marca, na verdade, o início da decadência.  “O grande impulso turístico e econômico foi entre os anos 1930 e 1940. O Grande Hotel foi uma tentativa de atrair ainda mais gente, sem tanto sucesso”.

No final das contas, toda aquela glória durou pouco mais de dois anos. Enquanto viajar para aquele lugar místico era moda, os quartos viviam cheios de gente. Quando deixou de ser novidade, o prédio, que destoa das paisagens rasteiras típicas das cidades pequenas, ficou às moscas. Nos períodos de baixa estação, os guardas mais simpáticos deixavam que as crianças brincassem pelos corredores. “Por um tempo, eram realizados shows, simpósios, bailes. As pessoas da alta sociedade passavam as férias na cidade, era um espaço de sociabilidade. Quase como uma praia, uma sala de estar. Achavam um ambiente exótico”, comenta Fernandes.

Oito anos após a grande inauguração, já não havia mais Getúlio Vargas, turistas curiosos ou dinheiro fervilhando no cassino. Em 1960, o Grande Hotel Caldas de Cipó fechou as portas, deixando um rastro de centenas de desempregados e uma cidade inteira boquiaberta e com poucas esperanças.

Reinauguração

Vinte e dois anos depois, no dia 4 de novembro de 1982, o “Elefante Branco da Terra” foi reinaugurado pelo então governador do estado, Antonio Carlos Magalhães. Agora, com uma nova roupagem: os 81 quartos viraram 40, porque um pedaço do hotel foi transformado num Centro Administrativo Regional, com um fórum, órgãos ligados à Secretaria da Agricultura, como a Embasa e a Telebahia, e uma agência do antigo Banco do Estado da Bahia (Baneb). “A ideia era voltar a movimentar a economia, revitalizando o hotel e trazendo o Centro Administrativo Regional para a cidade”, ilustra Márcio de Jesus, 31 anos, diretor de cultura da Secretaria Municipal de Turismo de Cipó e professor de geografia.

Dois anos depois, em 1984, o jornal A TARDE publicou a seguinte manchete: "Caldas de Cipó, milagre da natureza no sertão baiano". O texto fazia um percurso pelos pontos turísticos da cidade, com dicas de lazer, hospedagem, culinária e tratamentos de saúde nas águas termais. Na reportagem, a seguinte frase chama a atenção: "O Grande Hotel Caldas de Cipó, depois de reinaugurado, volta a viver seus áureos tempos". Áureos tempos que, novamente, não duraram muito.

José de Santana, 76 anos, curiosamente conhecido como Seu Robertinho entre os vizinhos, trabalhou como cozinheiro depois da reinauguração. “A gente cozinhava de tudo lá. Feijoada, bife à parmegiana, caldo de sururu. Os turistas gostavam muito do caldo, saía bastante”, relembra. Entre as lembranças mais peculiares que guarda daquele tempo está o dia em que a atriz Cláudia Ohana foi uma das hóspedes. “Fiz um suco para ela, mas ela não gostou e devolveu, tivemos que levar outro. Gente famosa dá um trabalho”, ri.

Entre outros famosos visitantes estão os sertanejos Leandro e Leonardo, alguns políticos, como Antonio Carlos Magalhães e o cantor Alexandre Pires. Sobre este último, ficaram algumas queixas. “Depois de ter vindo aqui, ele disse na televisão que o nosso hotel estava velho, cheio de morcegos. O pessoal aqui em Cipó não gosta muito dele, não”, sinaliza Márcio de Jesus, na praça, enquanto aponta para a construção abandonada.
No final dos anos 1990, com o movimento cada vez mais fraco, o hotel fechou definitivamente. “Eu vi o finalzinho, quando já estava sempre vazio. Gostaria de ter estado vivo para ver a cidade naquele tempo grandioso do passado. Fica realmente um sentimento de saudosismo na gente”, conclui o professor.

O hotel das abelhas
Desde o  fechamento do hotel, abelhas se instalaram no revestimento de madeira do telhado. Também nesse período, alguns móveis, como cadeiras, quadros e camas desapareceram. Na cidade, os moradores falam sobre os constantes saques ao acervo do prédio. “Tem gente que tem cadeiras do hotel em casa e nem sabe de onde vieram”, comenta Márcio.

Muito do que sobrou no prédio, que hoje abriga a Câmara de Vereadores e a Secretaria de Transportes municipal, virou cinzas. Numa noite de 2009, enquanto tentava queimar as abelhas que tomavam conta do quarto andar, um funcionário da prefeitura provocou um incêndio que destruiu o antigo salão-restaurante. “Eu estava na praça com alguns amigos. Os mais novos ficaram espantados ao ver a fumaça, o fogo, as janelas quebradas. Foi cinematográfico. Mas os mais velhos ficaram realmente tristes, muitos deles choravam. Aquele incêndio foi o fim dos tempos em que eles viveram”, conta Márcio.

Durante muito tempo, o professor não entendeu a importância daquela enorme edificação para a cidade. Quando começou a pesquisar, ficou maravilhado. Para difundir esse conhecimento entre os mais jovens nascidos na terra da Mãe-d’Água, criou o projeto Contos e Encantos, com início planejado para este mês, por meio do qual visitará escolas para contar a história da cidade e, por consequência, do edifício mais conhecido. “Só valorizamos a nossa cultura quando a conhecemos. Precisamos preservar essa memória e, quem sabe, revitalizar o Grande Hotel”.
Cada detalhe do passado da cidade é rico em causos inusitados. O prédio da prefeitura, por exemplo, começou a ser construído para abrigar um cassino. Com a proibição dos jogos de azar no Brasil, a obra parou e, mais tarde, foi transformada no que é hoje.

A sensação ao chegar a Cipó e, principalmente, ao caminhar pelos corredores chamuscados do edifício é a de estar perdido no tempo. O presente está ali, de frente para a praça, à vista de todos. O futuro é um mistério. À Muito, a Secretaria da Administração da Bahia (Seab), responsável pela gestão de patrimônios públicos, informou que, em novembro do ano passado, parte do prédio foi cedida para a instalação da Guarda Municipal da cidade até 2022. O imóvel, que era administrado pela Bahiatursa, foi incorporado ao patrimônio do Estado quando a empresa de turismo se tornou uma superintendência.

Uma frase dita no filme Grande Hotel (1932), do diretor britânico Edmund Goulding, traduz o sentimento que paira sobre a cidade: “Grande Hotel, sempre a mesma coisa. Pessoas vêm. Pessoas vão. Nada nunca acontece”.

Fonte: atarde uol

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